Folhetim

08 março, 2009

 

No primeiro capítulo de PEÇAS FRAGILIZADAS Alyrio vai a um hotel de luxo para encontrar seu cliente. Na conversa ele fica sabendo que Joca é um matador, além de ser um dos expoentes do mundo das drogas. Matou um empresário dos transportes da cidade de São Paulo e foi bem pago por isso. Ao perceber que todos os envolvidos naquele caso estavam morrendo, quer que Alyrio desvende os pontos obscuros. Com isso, sua amiga Valdeci vai escrever um livro. Joca acredita que obtendo as informações corretas, estará se livrando da morte.

Se você ainda não leu esse capítulo, ele está no ARQUIVO, no final do segundo capítulo.

SEGUNDO CAPÍTULO

O lusco-fusco do cair da tarde envolvia a cidade. Numa rua de edifícios altos, não se sabia para que lado ia o dia, nem mesmo de que lado vinha a noite. Alyrio saiu do hotel com a antiga frasqueira recheada com os vinte mil que ele não conferiu e um estranho peso nos ombros. Caminhou até a Rua Augusta no meio de um mar de gente que saía dos escritórios, e que respirava toda a poluição do horário de pico do tráfego. A história que acabara de ouvir lhe trazia uma espécie carência que aumentava no meio de tanta gente e tanto tráfego. Ao invés de virar a esquerda e ir para sua casa, seguiu em frente e virou na Padre João Manoel que era onde vivia sua amiga, a pintora Domitila. Desceu algumas quadras até a vila em que ficava a sua casa. Entrou pela ruela e estacionou no pátio. O alto muro que delimitava o fundo da vila era todo recoberto por vegetação, destacando-se uma cabeça de leão esculpida em cimento sobre uma pia, onde há tempos devia ter funcionado uma fonte. Alyrio sentiu uma onda de bem estar naquele nicho da cidade. Tocou a campainha e Domitila abriu a porta. Ela vestia calça jeans com a barra esfiapada e uma camiseta branca com algumas manchas de tinta. Ao vê-lo, ela abriu um grande sorriso e seus olhos castanhos amarelados se iluminaram. Alyrio sentiu que eram olhos onde podia mergulhar sem receio. Só de vê-los, o peso que lhe oprimia as costas se aliviou.

- E aí, como foi o encontro com o novo cliente? - ela sorriu. – Ele o contratou?

- Contratou.

- E qual é o caso?

- Antes me mostre o que você está pintando? – ele entrou, beijou-a nas faces.

- Vamos subir! Você vai conferir. – ela dirigiu-se à escada.

O sobrado da vila havia sido reformado e no andar de cima todas as paredes haviam sido derrubadas e se transformara em um espaço único onde ela abrigava seu ateliê. Próximo ao cavalete havia uma vela acesa e o ar estava carregado do cheiro de incenso.

- Continuo com minhas sacerdotisas! É uma fase que jamais vai passar, – Domitila falou diante da nova tela. – Acho até que nem é fase, é o tema da minha vida: reviver mulheres marcantes, com grande força espiritual!

Como na noite em que entrara em uma exposição atraído pelas mulheres atormentadas das telas e conheceu a pintora, mais uma vez estava diante de uma imagem onde era impossível manter-se indiferente. Domitila pintava mulheres exuberantes que ela nomeava sacerdotisas. Suas expressões transtornadas não pareciam feitas de elementos retirados do belo, mas especialmente daqueles que se encontram em demônios e feiticeiras, matéria mais alquímica do que estética. E foi o impacto da pintura que fez com que Alyrio entendesse o que lhe provocava o peso nas costas. Ter se encontrado com um cliente, no caso o Joca, era simplesmente mais um caso. No entanto, jamais trabalhara para um assassino confesso, um matador comprado que era um dos chefões do tráfico de drogas e de armas. Pelo que lera sobre o caso, aquele seqüestro envolvia políticos que conhecera desde os tempos de escola, com quem partilhara ideologias e em quem votara sem titubear, acreditando que no mínimo seriam íntegros, não usariam o poder em proveito próprio. Saber que esses mesmos políticos estavam envolvidos numa execução, senão em várias, provocava-lhe aquele estranho peso nas costas. O peso da desilusão de ver mais uma turma corrompida pelo poder e pelo dinheiro fácil. E a mulher alucinada que estava começando a tomar forma naquela tela o fez sentir o quanto aquele caso o atormentava por princípio.

Tirando os olhos da pintura e voltando-os para Domitila, sentiu um desejo muito grande de abraçá-la, de confortar-se no seu abraço. Ela também o olhou de uma forma muito carinhosa. Uma força alquímica fez os dois se aproximarem e se abraçarem. Ele percebeu que toda vez que sentia carência afetiva, era a ela que recorria. E ela estava sempre disposta a lhe dar o carinho que precisava.

- Que tal, gostou? – ela falou, voltando-se para a pintura e tirando-o de suas divagações.

- Por mais que você repita o tema, suas sacerdotisas sempre surpreendem. Sempre apresentam algo novo e extraordinário que atua no fundo da alma! – Ele pensou nas tantas vezes que ela lhe explicara que pintava a partir de experiências da alma, ou seja, daquelas mulheres serem o retrato de suas vidas passadas das quais sobravam resquícios em alguma parte do seu ser. Sorriu diante do próprio pensamento. Era incrível que ele próprio pensasse em vidas passadas sem escárnio.

- E o novo cliente? – A voz de Domitila trouxe-lhe o caso à mente.

- Você vai adorar essa história. Estou chegando de um encontro com um expoente do mundo do tráfico e assassino confesso! O homem está hospedado num hotel de luxo com uma amiga advogada! – Alyrio viu que Domitila arregalava os olhos o que o incentivou a continuar: - Ele executou um crime para o qual foi libertado da cadeia e bem pago. Deixou-se prender, confessou o crime e mais uma vez lhe foi facilitada a fuga. Só que está com o trágico pressentimento de que vai morrer! Queima de arquivo! – Ele avaliou o efeito que causava antes de continuar. – Acredita escrevendo tudo sobre as falcatruas que envolvem o caso, de alguma forma ele vai se safar da morte!

- Se é isso, para que o está contratando?

- Porque ele seqüestrou e executou um empresário dos transportes da cidade sem saber as implicações, ou sem dar a devida atenção a elas. Simplesmente matou mais um e privilegiou-se dos acertos combinados. Para ele, o serviço estava terminado! Foi ao perceber que os envolvidos no caso estão morrendo misteriosamente que ele começou a se preocupar! Até os dois companheiros que o ajudaram na primeira fuga da cadeia estão mortos!

- Misteriosamente... – ela franziu o rosto, fez um trejeito.

- Talvez o termo não seja misteriosamente, mas estão morrendo em assaltos e desastres isolados e ninguém está associando os fatos. Ou não interessa associá-los!

- E quem é o empresário assassinado?

- Foi um caso que esteve por algum tempo nos jornais. Nelson gerenciava uma empresa de transportes e era líder de uma das cooperativas de trabalhadores. Estava saindo de um restaurante com um amigo quando foi seqüestrado. Ele estava numa Mitsubishi blindada e foi surpreendente que os bandidos conseguissem facilmente abri-la. Joca me adiantou que Nelson estava com um amigo que facilitou as coisas. Isso não saiu na imprensa. Lembro que quando o seqüestro ocorreu, pareceu-me uma história bem estranha, pois até a trava das portas falhou e os seqüestradores conseguiram abri-las com facilidade. Pouco depois a Mitsubishi blindada, apareceu queimada num lixão. A polícia encerrou o caso como um seqüestro mal sucedido seguido de assassinato. – Alyrio tomou fôlego e continuou. - O caso envolve gente poderosa, pois até a autópsia, que foi assistida por um famoso advogado, teve os laudos adulterados! Nenhum jornal mencionou que o homem foi torturado. O assassino que está me contratando disse que ficou penalizado, e que quando deu os dois tiros, Nelson estava quase morto.

- E o que você vai poder fazer por ele?

- Ele quer todas as informações sobre o que Nelson sabia e não falou. – Enquanto falava, Alyrio procurava organizar as idéias na própria cabeça. - Joca ficou sabendo que Nelson possuía um dossiê com toda a sujeira que estava acontecendo nas empresas de transporte. Segundo soube, essas informações são valiosíssimas! Não deve ser somente a cobrança de propina e a distribuição da grana. Ele quer saber por que o torturaram tanto! Quer que eu encontre o tal dossiê.

- A história é interessante! O que é estranho é você estar sendo contratado pelo assassino! Vale a pena se envolver num caso destes? – O olhar de Domitila mostrava sua preocupação.

- Você está vendo essa frasqueira velha e surrada? – ele apontou a frasqueira e antes que ela respondesse continuou: - Vamos abri-la.

Pela primeira vez ele abriu a frasqueira e pôde ver que estava mesmo recheada de maços dinheiro.

- Quanta grana! – Era a segunda vez que Domitila arregalava os olhos, desta vez de pura surpresa.

- Os trabalhos sempre valem a pena pela adrenalina e pela grana! Esse realmente começa se superando.

- Pela adrenalina ou pela grana? – Ela tomava fôlego depois de ver tanto dinheiro.

- Joca me informou que no mundo da droga, grana não é problema! Com certeza essas notas são uma pequena parte das que são recebidas numa noite de sexta ou sábado, de mauricinhos que vão às bocas comprar o suprimento de drogas para alegrar a balada. Ele vai pagar tudo o que eu pedir. – Alyrio continuou: - A adrenalina com certeza também vai se superar!

- E você veio até aqui andando com essa grana toda! É bom colocar no banco. – Ela aconselhou. – Há sempre o perigo de ser assaltado!

- Amanhã logo cedo vou fazer isso e me deixar assaltar pelo governo, pagando impostos sobre míseros rendimentos! Hoje vamos gastar um pouco, jantando num lugar bem especial!

- Se vamos a um lugar especial, vou vestir uma roupa apropriada! – ela sorriu fazendo um gesto que mostrava as próprias roupas. - Vamos lá para baixo e, enquanto eu me troco, você serve um uísque.

Os dois desceram. Ela foi para o quarto e ele ficou na sala. Serviu-se de mais um uísque com muito gelo. Ligou a TV para ver as notícias. Não havia muito mais do que CPIs frustradas e a corrupção correndo solta. Alyrio se irritou e desligou. Ficou sentado, bebendo muito devagar o seu uísque enquanto lembrava a conversa com Joca e Val. Embora gostasse de desafios, jamais se imaginou sendo contratado por um assassino! Ao mesmo tempo em que Domitila saiu do quarto, ele mais uma vez pensou que aquele caso seria com muita adrenalina.

- Você está linda! – ele exclamou fitando Domitila de cima abaixo. Ela parecia outra mulher. Vestia um vestido de alças azul claro com uma sandália de saltos altos e havia feito uma leve maquilagem que lhe caia muito bem. – Nem parece a mesma mulher que me recebeu há pouco!

- Qual você prefere?

Ela se aproximou e ele sentiu-lhe o perfume. Não resistiu. Beijou-a.

- Gosto das duas! Variedade é sempre bom! – ele enfrentou um olhar sério que se abriu num sorriso.

Ele preparou-lhe um uísque com gelo enquanto ela pegava a revistinha que saía semanalmente no jornal e os dois escolheram o restaurante.

Escrito por Vera Carvalho Assumpção  em10:12 PM 0 comentários

Arquivo

04.03.09   08.03.09   13.03.09   28.03.09  

This page is powered by Blogger. Isn't yours?