- Muito trabalho? – o garçom perguntou.
- Estou começando um que me parece bem interessante! – Alyrio sorriu ao imaginar o que ele sentiria se contasse que fora contratado por um assassino confesso.
Àquela hora, a padaria ficava cheia de gente tomando média com pão e manteiga e não dava para encompridar o assunto. O garçom foi servir outros clientes e Alyrio tomou seu café. Na mesma rua, bem próxima à sua casa, havia uma igreja. Ele saiu da padaria e foi para lá. Entrou, caminhou e sentou-se num banco próximo ao altar.
Na manhã de outono, a igreja com seus vitrais coloridos, ligeiramente aquecidos por um sol pálido, dava a impressão de um lugar purificado de toda a imperfeição terrena, concebido para que ali se sentisse a presença divina. Sentado diante do altar, Alyrio observou uma senhora que acendia a vela de um lado do altar. Ela colocou o fogo no pavio com um fósforo e ficou protegendo-o com as mãos enquanto a chama se inflava com oxigênio e se firmava.
Ficou observando até ter certeza de que o fogo estava realmente forte e depois repetiu os mesmos gestos do outro lado. Observar o fogo trouxe à Alyrio uma grande tranqüilidade. Por um longo tempo ele ficou sentado diante do altar pensando nas implicações daquele caso. Sempre trabalhara buscando o assassino. Jamais fora contratado pelo próprio assassino! Do jeito que os valores da sociedade estavam mudando, onde a vida cada vez valia menos diante do poder e da grana, era preciso estar preparado para qualquer situação! Joça, o assassino que o contratara, era uma das peças do jogo dos poderosos. Uma peça que começava a se sentir fragilizada. Com medo do xeque mate!
Pouco antes das dez, Alyrio saiu da igreja e dirigiu-se ao banco na Paulista. Foi um dos primeiros a entrar e ficar na fila do caixa. Chegou a sua vez e ele observou o rapaz do caixa olhar assustado para a frasqueira. Voltou-se para ele com certa apreensão e ele se manteve sério, limitando-se a informar o número da conta em que era para ser feito o depósito.
O rapaz fez um gesto quase imperceptível de balançar os ombros. Não era da sua conta de onde vinha aquele monte de notas, e se pôs a separar os valores. Em seguida foi contando e separando as notas em pequenos montes. Depois de várias recontagens, confirmou o valor e fez o depósito. Alyrio saiu do banco satisfeito. Ali estava a grana para as despesas, mas ainda não havia estipulado o preço do trabalho. Esfregou as mãos ao imaginar que seria muito bem pago. Especialmente porque no mundo da contravenção a grana corria tanto quanto no mundo dos políticos. Aliás, cada vez mais esses dois mundos se entrecruzavam.
Estando na Paulista, ele resolveu ir para o escritório de metrô. Entrou na estação Consolação, desceu as escadas, tomou o trem, fez as baldeações necessárias e desceu na estação Anhangabaú. Caminhou um pequeno trecho pela Sete de Abril e chegou ao edifício em que ficava seu escritório. Cumprimentou o porteiro e tomou o antigo elevador. Desceu no seu andar. No hall, levantou os olhos para o vitral. Estava iluminado e criava uma aura de cores à sua volta, mas ainda não projetava o próprio reflexo no piso de mármore. Isso só ocorria nos finais de tarde, quando o sol incidia sobre seu desenho e fazia com que o piso do hall mostrasse formas e cores fantásticas. Caminhou pelo corredor e viu a porta do escritório de George aberta.
- Tudo bem? – ele parou diante da porta aberta.
- Não posso me queixar! - George levantou o olhar dos papéis que estavam sobre sua mesa. – E você? Como foi o encontro com o novo cliente?
- O caso promete muita adrenalina! Talvez você possa me ajudar!
- Diga o que você precisa!
- Dá para conseguir uma lista completa dos empresários do ramo de transportes na cidade de São Paulo.
- Me dá um tempinho que eu levo para você! – George fez um gesto que pedia tempo.
Alyrio encostou a porta do escritório de George e entrou na porta seguinte. Conferiu a correspondência, os recados da secretária eletrônica e ligou o micro. Conferiu o correio eletrônico, respondendo o que merecia ser respondido e apagando o resto. Algum tempo depois ouviu as três batidinhas características de George.
- Já recebeu a lista? – ele entrou e postou-se em frente à escrivaninha.
Mais uma vez Alyrio acionou o correio eletrônico e o e-mail de George estava lá. – Já chegou.
- Me conte o caso para eu saber o porquê da lista.
Alyrio narrou toda a conversa com Joca e Val.
- O caso promete mesmo muita adrenalina! – George sorriu.
- O pior é que o caso envolve políticos em quem votei por convicção. Por acreditar que estaríamos ao menos sendo governados por gente com vontade de melhorar nosso país e não meter a mão nas mesmas cumbucas! – A voz de Alyrio era pesarosa.
- Esqueça! Você tem um caso e não pode se deixar envolver por problemas emocionais! – George abanou a mão como se espantasse um mosquito. - Se você pretende entrevistar os donos de empresas de ônibus e lotações, sugiro que comece pelas grandes, as que pagam propinas maiores! Conheço boa parte dessa turma em função dos seguros que fazem comigo. Vou selecioná-las para você.
Alyrio levantou e George sentou-se em frente ao micro. Examinou a lista que ele mesmo enviara. Alyrio observava o amigo entretido naquela tarefa enquanto pensava que George era o cara que sempre tinha boas idéias para salvar o país e o mundo. Bastava um pouco de álcool em suas veias e ele era capaz de discorrer por horas sobre as possibilidades dos poderosos serem solidários e trabalharem para um bem comum. E esse bem comum era sempre melhorar a qualidade de vida da população. Criar condições para que todos pudessem viver com dignidade. Diante daquele caso, era fácil perceber que por mais que se mudassem os poderosos, nenhum deles tinha esse instinto de trabalhar para o bem comum. Ninguém se empenhava em melhorar a educação e consequentemente a consciência da população. Cada um pensava em si e na própria família!
- Comece a telefonar e tente agendar entrevistas com os responsáveis por essas empresas. – George levantou-se para pegar a folha que saía da impressora e entregou-a a Alyrio - Com certeza são as que têm potencial para propinas consideráveis. – Ele esperou que Alyrio absorvesse a informação e se dirigiu à porta. – Está quase na hora do almoço! – informou.
Alyrio levantou o polegar num gesto afirmativo e George saiu.